Uma visão geral das citações do mês
Recapitulação das citações antigas do mês a partir da página principal. A designação de citação do mês não é ideal, porque essas "citações" são realmente trechos da série de livros Angélica, de Anne Golon, que expressam adequadamente a atmosfera do período atual do ano... Em geral, todas as citações correspondem às épocas do ano e ao clima atual, e, claro, às tradições culturais (ritos) adequadas para a temporada atual.
Novembro 2022
No salão posterior do
Gouldsboro, um braseiro sobre um sólido tripé entalhado dispensava um calor reconfortante. Bem no fundo, uma alcova, cujas cortinas de brocado haviam sido puxadas, revelava a cama macia de lençóis debruados de rendas assentadas sobre sedas e peles. O aposento era confortável, com todos os tipos de objetos bonitos. Os grandes vidros do castelo de popa deixavam filtrar a luz difusa dos faróis do lado de fora. Essa luz imprecisa prendia centelhas nos bronzes e ouros da mobília e nas preciosas encadernações dos livros dispostos em armários de madeira de palis-sandra. Sempre que aí se refugiava, Angélica experimentava uma impressão de bem-estar e segurança. Lançou o manto no espaldar de uma poltrona, foi até a alcova e começou a se despir.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o complô das sombras. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Outubro 2022
Um pouco depois do aniversário de.seu primeiro ano de vida, os gémeos deram seus primeiros passos, saudados pelas ovações e risos da população do forte. Ria-se bem menos algum tempo depois, quando, andando infatigável pela casa, subindo nos escabelos e abrindo as portas, puseram a criadagem em polvorosa. Amas-secas, bordadeiras, nutrizes pediram ajuda à guarda. Irmãos e irmãs de leite diversos-tinham levantado vôo ao mesmo tempo. Formavam um pequeno bando.
(Golon, Anne e Serge. A vitória de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Setembro 2022
A floresta estava envernizada e brilhava muito, mesmo de longe, cores vivas e extravagantes, pontilhadas do negro dos abetos, do azul-turquesa de pinheiros enormes que erguiam sua copa, do vermelho-ouro de certos arbustos anunciando o outono. Já! Quando nem se vira o verão anunciar-se. Por toda a volta da baía, e mais além, no mar de uma intensa cor-de lavanda, ilhas bordeadas de rosa alongavam seus domos folhudos. Davam a impressão de um povo-de esqualos, defendendo a costa admirável da cobiça dos homens corri os perigos de suas, pontas rochosas. Enfiar-se por entre elas para atingir o refúgio onde o navio oscilava parecia obra impossível.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e seu amor. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Agosto 2022
A volta de Angélica, as cortesãs cochichavam, sonhavam, faziam intrigas. Todas aquelas fêmeas, confortáveis na tepidez das almofadas, entregavam-se à animalidade de seus belos corpos dedicados ao amor. Macias e suaves, perfumadas, adornadas, eram feitas, com suas curvas sinuosas, para o abraço de um amo imperioso. Não tinham outra razão de existir e viviam na expectativa do prazer que ele lhes daria, enraivecidas pela ociosidade e pela continência forçada. Pois, dentre aquelas centenas de mulheres, eram muito poucas as que recebiam as homenagens do príncipe.
(Golon, Anne e Serge. Angélica indomável. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Julho 2022
Ao aproximar-se do alojamento de Cantor, viu brilhar a lâmpada por trás da lucarna entreaberta e parou. Ele estaria sozinho? Vá-se saber, com esses jovens! Mas, dando uma olhada lá dentro, sorriu. Pois-ele adormecera com a mão ainda estendida na direçào de um enorme cesto de cerejas quexolocara perto da cama, sobre um escabelo. [...] Ela entrou sub-repticiamente na cabana e foi sentar-se à cabeceira dele. “Cantor!” Ele teve um sobressalto, abriu os olhos. “Não tema nada. Só vim lhe pedir um palpite. O que você pensa da Duquesa de Maudribourg?” Pegava-o de surpresa, para que ele não tivesse tempo de desconfiar e de se fechar sobre si mesmo, como de hábito. Ele se sentou, meio apoiado num cotovelo, e olhou-a com ar desconfiado, apesar de tudo. Angélica pegou o cesto de cerejas e colocou-o entre eles. Os frutos faziam bem à vista e ao palato. Eram enormes, brilhantes e de um vermelho realmente cintilante.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e a duquesa diabólica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Junho 2022
Por entre as folhas envernizadas dos enormes carvalhos que pendiam sobre eles, passava a claridade da tarde, filtrada pelas massas de vegetação opulenta, ganhando um reflexo esverdeado que empalidecia os semblantes e acusava as sombras. A cor dourada estava agora do lado do rio. A enseada tornava-se cor de estanho. Devido a um jogo de espelhos entre as águas e o céu, a luminosidade era maior do que antes. Estavam próximas as tardes de junho, que avançam sobre a noite e partilham seu reinado. Nessa época do ano, os homens e os animais consagram poucas horas ao sono. Haviam jogado nas fogueiras gordos cogumelos, negros, secos e redondos como balas, os quais, ao queimar, espalhavam um odor acre e selvagem com poder de afastar os mosquitos. A ele se misturava o perfume do tabaco que escapava de todos os cachimbos. A enseada estava enevoada e perfumada. Um abrigo escondido à beira do Kennebec.
(Golon, Anne e Serge. A tentação de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Maio 2022
Quando se soube que uma nova feiticeira se introduzira nas grutas de Hauts-de-Mère, puseram-lhe, por hábito, ò nome de Melusina. De onde vêm as feiticeiras das florestas? Que caminhos de desgraça e maldição conduzem-nas aos mesmos lugares para uma aliança com a lua, a coruja e as plantas? Dizia-se que aquela era a mais sábia e a mais perigosa que se conhecera na região. Contavam também que tratava a febre com caldo de víbora, a gota com sais de bichos-de conta e a surdez com óleo de formiga, e que era igualmente capaz de encerrar um Demónio das primeiras legiões de Satã em uma avelã. [...] As jovens que haviam errado conheciam o caminho de seu refúgio, bem como aqueles que achavam muito demorado aguardar a morte natural de um velho tio com herança. Angélica, que havia escutado todas essas tagarelices, olhava com interesse a estranha criatura.
(Golon, Anne e Serge. A revolta de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Abril 2022
“Mas de onde você veio? Está como que transfigurada.” “Eu?” De repente Angélica se viu nua no alto espelho de aço polido apoiado à parede, ao qual tinha o costume de lançar apenas um olhar distraído para ajeitar os cabelos e a touca. Num átimo reconheceu sua alvura, sua imagem de mulher robusta, cintura bem-feita, seios altos, costas alongadas, pernas harmoniosas, "as mais belas pernas de Versalhes", com a marca vermelha da cicatriz causada por Colin Paturel para salvá-la da serpente no Rif. Um corpo esquecido! A voz insultante voltou a seus ouvidos. “Uma mulher por quem hoje não daria cem piastras.” Ela deu de ombros, desenvolta, trocista: “Do que ele precisa? Pior para ele.”
(Golon, Anne e Serge. A revolta de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Março 2022
“Case-se comigo, eu lhe imploro, casemo-nos enquanto é tempo.” “Enquanto é tempo?...” repetiu ela com surpresa. Ela estava de pé no último degrau da escadaria, de onde o tinha interpelado quando viera ao encontro dele. Sua pequena mão ornada de anéis repousava no corrimão de pedra trabalhada. [...] Sua pessoa era a imagem de uma jovem viúva muito frágil para viver, assim isolada, no seio de uma grande habitação semideser-ta. Mas seus olhos verdes recusavam qualquer clemência. Vagarosamente, eles percorreram a decoração grandiosa do vestíbulo de mosaicos de pedra dura, as altas janelas abertas para o pátio, o teto de caixotões, guarnecido de emblemas que não puderam ser apagados. “Enquanto é tempo?” repetiu ela em voz mais baixa, como para si mesma. “Oh! Não, sinceramente, eu não creio.” Com a sensação de haver recebido uma bofetada, Audiger mediu o abismo que o separava dela.
(Golon, Anne e Serge. Angélica a caminho de Versalhes. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Fevereiro 2022
O ar das ruas de Paris, que outrora ela achara tão mal cheiroso, pareceu-lhe puro e delicioso quando enfim voltou a achar-se livre, bem viva e trajada com roupa limpa, fora do repugnante edifício. Caminhava quase alegremente, com o filho nos braços. [...] Passavam junto dela pessoas com círios na mão. Saía das casas um cheiro de folhados quentes. Ela disse consigo mesma que devia ser 2 de fevereiro. As pessoas celebravam a apresentação do Menino Jesus no Temple e a purificação da Virgem, oferecendo círios uns aos outros, segundo um costume que tinha feito dar a esse dia o nome de Candelária. “Pobre Menino Jesus,” pensou, beijando a fronte de Cantor enquanto transpunha a porta do Temple.
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Janeiro 2022
A luz da lanterna era supérflua. Uma vez atravessado-o estreito corredor entre duas paredes de gelo que, da soleira da-pona, subiam para a superfície endurecida do pátio, estava claro devido ao luar. [...] Via-se bem longe, até a outra extremidade do primeiro lago. Envolta na poeira de neve que o vento raspava à superfície do solo, a paisagem parecia emergir de uma nuvem turva e brilhante, que lhe embaçava os contornos. Era uma poeira de diamante que turbilhonava como um halo à volta do cimo dos bosques, ou coroando a curva das colinas, sublinhando as margens do lago, que, sob a extensão de neve lisa e gelada, na qual se refletia a luz, merecia mais do que nunca o nome de lago de Prata.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o Novo Mundo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Dezembro 2021
Esta era uma das razões pelas quais Angélica gostava de neve. Nada mais delicioso, quando levantavam, no calor da casa, do que adivinhar, através dos vidros constelados de geada, a claridade baça da neve caída, sem ruído, durante a noite. O dia seria diferente. Era preciso tomar outras providências: era imperativo fazer um bolo. [...] Quando caía a neve, era também o momento de imolar um ou dois porcos, e as cerimónias de matança iniciavam a lista das festa e comemorações da estação. Haveria o Advento e os costumes diversos que o acompanhavam. O Natal, todo feito de devoção, depois a Epifania, onde se trocavam presentes em memória aos reis magos. A vida se organizava no interior da casa.
(Golon, Anne e Serge. Angélica no caminho da esperança. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Novembro 2021
Os convivas tomavam-lugar à mesa. Era apenas um jantar bem íntimo, entre os membro habituais da frota do Rescator, oficiais majores e seus hóspedes mais ou menos forçados. Essa sociedade estava assim formada desde o início da viagem, até reunir um grupo homogéneo, apesar das aparências, pois era composto de pessoas que se haviamrexposto nesse breve: lapso de tempo às mesmas aventuras e que partilhavam, pela força das circunstâncias, das mesmas preocupações e das mesmas alegrias. Mas, em honra ao vinho, preparou-se uma mesa mais suntuosa e colocaram-se diante de cada conviva cálices desse cristal da Boémia que os cristais de ouro tingem de vermelho.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o complô das sombras. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Outubro 2021
Depois de contemplarem um instante, eles dobraram à esquerda. A cortina de árvores fechou-se atrás deles, o mar desapareceu. Agora só estavam cercados pela opulenta escolta de árvores seculares onde predominavam o vermelho, o laranja e o ouro-velho. A mancha azul-esverdeada de um lago espalhava-se entre os galhos. Um alce bebia no lago. Quando lançava a cabeça para trás, sua galhada se assemelhava a asas escuras. Atrás dos troncos frágeis das bétulas, atrás das colunas de carvalhos, não se podia esquecer que vivia um mundo animal de intensa vitalidade: alces, ursos, cervos, renas, lobos e coiotes, e milhares de animaizinhos peludos — castores, visons, raposas prateadas, arminhos. Os pássaros povoavam os galhos.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e seu amor. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Setembro 2021
No vestíbulo encontrou Hortênsia, com um avental branco em torno da magra cintura. A casa cheirava a morango quente e laranja. Em setembro as boas donas-de-casa faziam suas conservas. Era uma operação delicada e importante, entre enormes tachos de cobre, pães de açúcar trilhados e lágrimas de Bárbara. A casa ficava de pernas para o ar durante três dias. Hortênsia, que levava nas mãos um precioso pão de açúcar, esbarrou em Florimond, que saía da cozinha agitando furiosamente seu chocalho de prata com três guizos e dois dentes de cristal. Foi o bastante para fazer desencadear a tormenta. [...] “Não grite tão alto,” disse Angélica. “Muito me agradaria ajudá-la a fazer as conservas. Conheço três boas receitas do Midi.” Hortênsia, com seu pão de açúcar na mão, ergueu-se como se estivesse envolta em uma túnica de atriz de tragédia. “Nunca,” disse ferozmente.
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Agosto 2021
Deixando os dois homens a sós, Abigail levara Angélica para fora, a fim de mostrar-lhe seu jardim. A amizade das duas Mulheres estava além de todas as brigas. Por instinto das se isolavam, recusando-se a examinar muito de perto o que nos atos dos homens podia ferir demais, proibindo-se de julgar com intransigência, a fim de preservarem entre si aquele vínculo necessário de afeição mútua, aquela aliança de suas sensibilidades femininas. Por mais diferentes que fossem, precisavam gostar uma da outra. Era um refúgio, uma certeza, algo suave, vivo, que nem mesmo a ausência poderia romper, e que cada provação enfrentada fortificara ao invés de destruir.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e a duquesa diabólica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Julho 2021
Angélica imaginou que tivesse permanecido desperta, mas devia ter mergulhado num curto sono, pois de repente teve consciência de que amanhecia. Na aurora, com transparências de nácar, erguia-se uma ilha. Contra um céu de ouro-claro e pervinca, era apenas uma massa de um azul espesso e turvo, refletindo-se no espelho quase imóvel do mar. [...] O Duque de Vivonne, de excelente humor, estendeu-lhe a luneta. “Veja, senhora, como aquela ilha é acolhedora! Observe que nem há franja de espuma da ressaca ao pé daquelas rochas vulcânicas. Isso significa que nos aproximaremos na mais absoluta calma. Nenhuma dificuldade para acostar.” Angélica levou algum tempo para se habituar à luneta, depois soltou gritos de admiração, ao descobrir a enseada, nas profundezas arroxeadas, onde gaivotas faziam piruetas.
(Golon, Anne e Serge. Angélica indomável. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Junho 2021
Acariciava pensativamente os longos cabelos acobreados e seu gesto era de bênção. Depois voltou às questões práticas. “Minha criança, o verão logo estará aí. Você vai sentir calor com seus longos cabelos. E não quer que os trancemos. E se eu os cortasse, só até os ombros, para que você ficasse mais à vontade?” “Minha mãe não quer. É só tocar em meus cabelos que ela faz uma cena.” Contou como quisera fazer um penteado iroquês, e todos os aborrecimentos disso resultantes. A história divertiu Margarida Bourgeoys imensamente. Ela riu, e com uma alegria tão franca e juvenil que Honorina, encantada com seu sucesso e por ter conseguido desanuviar a superiora, que ela achava um tanto quanto severa, voltou alegremente a jogar bola no jardim com suas amiguinhas.
(Golon, Anne e Serge. A vitória de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Maio 2021
Com um braço passado em volta dos ombros de seus garotos, Angélica respirava com delícia o ar puro dos campos em flor. Perguntava a si mesma como pudera viver tantos anos em uma cidade como Paris. Dava gritos de alegria e dizia os nomes dos lugarejos que atravessava, cada um dos quais lhe recordava uma anedota de sua infância. Durante vários dias ela fizera a seus filhos descrições detalhadas de Monteloup e dos folguedos maravilhosos a que podiam entregar-se ali. Florimond e Cantor conheciam o subterrâneo que lhe servira outrora de caverna de feiticeira e o celeiro de desvãos encantados. Afinal, o Plessis surgiu ao longe, branco e misterioso, à beira de seu lago. Pareceu a Angélica, que conhecera as moradas suntuosas e os palácios parisienses, menor que a imagem gravada em sua memória.
(Golon, Anne e Serge. Angélica a caminho de Versalhes. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Abril 2021
“Decididamente as loucuras das mulheres são variadas, mas devo reconhecer que você ultrapassa a média de longe. Recapitulemos: da última vez que a encontrei, abandonou-me, deixando, a título de recordação, meu navio em chamas e trinta e cinco mil piastras de dívida. Quatro anos mais tarde, acha perfeitamente natural vir encontrar-me, sem temer nenhum castigo, para pedir-me que a receba a bordo com quarenta amigos fugitivos. Confesse que sua pretensão ultrapassa o entendimento!” Com um golpe seco do dedo inverteu uma ampulheta colocada sobre uma mesa baixa junto dele. O instrumento, graças a um pesado pedestal de bronze que o mantinha no lugar, não parecia desequilibrado pelos movimentos do barco. A areia começou a escoar, pequena torrente luminosa e rápida, e Angélica olhou-a fixamente. As horas passavam, a noite findava...
(Golon, Anne e Serge. A revolta de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Março 2021
Na plenitude dos dons que haviam feito dela uma mulher, ela atingia a idade extraordinária em que para cada mulher a existência, continuando sua meteórica carreira, parece ficar mais leve, apurar-se, renovar-se na apoteose de uma liberdade da alma e do espírito, pelo qual se pagou caro, mas que é mais preciosa, onde o peso dos erros, que são amiúde apenas os ensinamentos do duro oficio de viver, perde a densidade. É permitido deixar no caminho os fardos do passado, esquecer aquilo que pode ser esquecido, lembrar-se apenas da riqueza dessa imperfeita e difícil aventura de viver a vida plenamente.
(Golon, Anne e Serge. A tentação de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Janeiro - Fevereiro 2021
Angélica olhava pela janela, para ver se a neve se acalmava, más as rajadas brancas continuavam a passar sobre a tela negra da noite. Houve uma batida contra a janela. Um grande pombo acabava de pousar ali, no ângulo do peitoril. Como a pomba da Arca, não encontrando nada sobre a terra desolada, refugiava-se junto aos homens. Sobrevivia graças à cidade e aos seus mil abrigos e restos de comida... As pálpebras de membrana branca piscavam rápido sobre seus olhinhos vermelhos. Sem medo, o pombo a encarava com ar de familiaridade. “Ele vive aí”, disse o bispo. “É o seu ninho. Nas tormentas mais fortes vejo-o encolhido e satisfeito. A pequena saliência de pedra, pouca coisa mais larga do que as suas duas patas, representa segurança para ele, que parece agradecer a Deus por isso. Que lição para nós, que somos tão exigentes e tão preocupados com nosso bem-estar!”
(Golon, Anne e Serge. Angélica em Quebec II. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Novembro - Dezembro 2020
Uma noite Joffrey de Peyrac tomou Angélica pelo braço e levou-a até a beira do lago. O frio seco era agradável. “Está preocupada, minha bela? Vejo-o em seu rosto. Confie-me suas penas!” Um pouco embaraçada, ela lhe contou dos receios que às vezes a acometiam. Para começar, a má sorte, o azar não seria mais forte do que a bravura deles? [...] Sacou do gibão a cruzinha de ouro que arrancara do pescoço do
abenaki morto. “Olhe isto... O que vê?” “E uma cruz.” “A mim, o que me chàmà a atenção é que seja de ouro... Foi porque vi muitas desta joiazinhas no pescoço dos indígenas, cruzes e outros símbolos, que me decidi a explorar o país. [...] As cruzes tinham razão. Encontrei. A cruz me guiou, como você vê. Wapassu é a mais rica dessas minas, mas tenho outras, um pouco por toda parte no Maine. Agora que sei que o governo do Canadá está de olho em mim, tenho que me apressar para fazer frutificar minhas descobertas... Gostaria de tê-la instalado com mais conforto em Katarunk. No entanto, vindo para cá ganhamos tempo. Só precisamos atravessar o inverno. Será duro. Aqui o nosso único inimigo será a natureza. Mas também é dela que tirarei meu poder. Antigamente tive fortuna sem poder. Ainda preciso adquirir a primeira para ter o direito de viver. Será mais fácil para mim conseguir isso no Novo Mundo do que no Velho.”
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o Novo Mundo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Setembro - Outubro 2020
“Gosta de jóias?” Puxou sobre a mesa um cofrinho de ferro e abriu a tampa pesada. “Olhe.” Retirava pérolas, admiráveis com uma luz leitosa e irisada, montadas sobre fechos de prata dourada. Depois de estender o adorno diante de Angélica, colocou-o sobre a mesa; pegou outro, um colar cujas pérolas eram mais douradas, mas todas do mesmo tamanho, com o mesmo brilho, tão numerosas que parecia um milagre mantê-las unidas. O colar daria dez voltas ao pescoço e ainda cairia até os joelhos. Angélica lançou um olhar perplexo sobre essas maravilhas. O aparecimento daquelas jóias insultava seu humilde vestido de fustão, seu peitilho de pano preto, amarrado sobre uma camisa de tela grossa. De repente sentia-se pouco à vontade naqueles trajes comuns. "Pérolas?... Usei algumas igualmente belas quando estava na corte", pensou ela. "Não tão belas assim", corrigiu-se logo. O constrangimento abandonou-a de súbito. "Era uma rara alegria possuir essas coisas bonitas, mas era também um fardo pesado. Agora sou livre."
(Golon, Anne e Serge. Angélica e seu amor. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Julho - Agosto 2020
Havia contornado o castelo e agora se achava ao pé da parede que tantas vezes havia escalado para contemplar os tesouros do aposento encantado. [...] A janela estava aberta e Angélica inclinou-se para a frente. Adivinhava que, pela primeira vez, o aposento estaria habitado, porque a luz dourada de uma lamparina de azeite o iluminava. O mistério dos belos móveis e da tapeçaria acentuava-se ainda mais. Via-se luzirem como cristais de neve os nácares de uma pequena secretária de ébano. De repente, olhando em direção do alto leito adamascado, Angélica teve a impressão de que o quadro do deus e da deusa se animava. Dois corpos brancos e nus estreitavam-se em meio à desordem dos lençóis rejeitados, cujas rendas se arrastavam no chão.
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Junho 2020
A luz ao longe não era o que ela acreditara, mas apenas a claridade da longa noite de junho, que custava a se extinguir, estendendo sobre a terra um toldo de um verde fosforescente... Ao longo da faixa de areia, havia uma colónia de lobos-marinhos, e os grandes machos, chamados de donos das praias, erguiam-se como sombras monolíticas, voltados para o mar cintilante, vigiando não se sabia o que ao largo, enquanto à sua volta, menores e mais escuras, andavam as fêmeas reluzentes... [...] No século precedente, um viajante descrevera as focas, surpreso: “Sua cabeça é como a dos cães, sem orelhas, e o pêlo é da cor do burel acastanhado dos ermitões, como o que carregam os mínimos...” Angélica havia lido sobre isso em criança, quando sonhava em partir para a América... E eis que ali estava agora, nessa praia perdida da América, uma mulher na metade da existência, e não mais a criança sonhadora e arrebatada do velho castelo de Monteloup, e no entanto parecia-lhe que poucas coisas haviam mudado em si mesma. “Tudo já está dito desde a primeira idade... Só se muda negando-se a si mesmo...”
(Golon, Anne e Serge. A tentação de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Maio 2020
Seu pai viu-a voltar pulando e batendo palmas segundo o ritmo das baladas e rondas que se começaria a dançar dali a pouco. Saltavam-lhe sobre os ombros os seus cabelos de ouro escuro. Talvez porque trajava um vestido curto e apertado demais, sentiu logo que ela se havia desenvolvido nos últimos meses. Ela, que fora sempre tão franzina, parecia ter agora doze anos. Seus ombros tinham-se alargado e seu peito punha leves saliências na sarja puída do vestido. O sangue jovem avermelhava-lhe as faces, e seus lábios entreabertos e úmidos sorriam, deixando aparecer os dentinhos perfeitos. Como a maior parte das moças da aldeia, tinha posto na abertura de seu corpete um grande ramo de prímulas amarelas e lilases.
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Abril 2020
Hortênsia recebeu sua irmã e o advogado com uma expressão francamente hostil. “Muito bem! Muito bem!”, disse ela procurando dominar-se. “Observo que a cada uma de suas fugas você volta num estado mais lamentável. E sempre acompanhada, naturalmente.” “Hortênsia, é o Maítre Desgrez.” Hortênsia voltou as costas ao advogado, cuja presença não podia tolerar por causa de sua roupa lamentável e sua reputação de homem desregrado. [...] Bateram à porta, e Bárbara fez entrar Gontran. Sua presença aumentou a irritação de Hortênsia, que prorrompeu em imprecações. “Que fiz eu ao Senhor para que me acabrunhe assim com um irmão e uma irmã desta espécie? Quem poderá crer agora que mi nha família seja realmente de antiga nobreza? Uma irmã que volta para casa vestida como trapeira! Um irmão que, de degradação em degradação, se vê reduzido a converter-se em um grosseiro trabalhador manual, que nobres e burgueses podem tratar com desdém e sovar com uma bengala!... Não é só esse horrível bruxo coxo que deveriam encerrar na Bastilha, mas a vocês todos com ele!...”
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Fevereiro - Março 2020
Ela se pôs a andar, apressada, ao encontro da filha. A chuva caía. Poças no caminho refletiam o céu esbranquiçado. Um cavaleiro ultrapassou-a e voltou-se sobre a cela. Era Mestre Gabriel. “Posso levá-la na garupa, Dame Angélica?” Ela sentiu um estranho choque. Via-se numa estrada esburacada, num cenário semelhante, com um cavaleiro que se voltava para ela e tinha o sorriso de Mestre Gabriel. “Não,” ela se ouviu respondendo, depois de um longo momento. “Sou sua criada, Mestre Gabriel. Fariam comentários...” “É verdade que não estamos nos arredores de Paris, na estrada de Charenton.” O véu se rasgou. ,A Polaca estava a seu lado, e Angélica tinha os pés gelados como hoje.' [...] Doze anos se apagavam. As duas cenas se aproximavam, parelhas. Tinahm o mesmo gosto de solidão infinita. No abandono total, um rosto de homem es-tranho, um sorriso compadecido, traziam um consolo fugaz.
(Golon, Anne e Serge. A revolta de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Janeiro 2020
Angélica gostava daquela hora, que parecia prometer o perdão. Não estava mais assustada por estar sozinha ali, nas trevas infinitas do céu e da terra misturadas, e onde nenhuma luz penetrava. Perdera um pouco a noção das datas e, quando a luz do dia começava a se expandir, desvelando aquele deserto branco mudo, surdo e congelado, não queria reconhecer que se havia atingido aquele momento do ano que, nos outros invernos, fazia com que as pessoas de Wapassu pensassem com seus botões, ou dissessem àqueles que se impressionavam com isso: “O inverno se fechou”. De todo modo, não vinha ali para meditar sobre sua solidão. Havia uma vida, um movimento ao qual era sensível naquele instante grandioso, o mesmo e diferente a cada nascer do sol. Era a vida. Mexia-se. Falava. Um teatro ordenava-se para ela em todos os pontos do horizonte. A imagem não era idêntica.
(Golon, Anne e Serge. A vitória de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Dezembro 2019
“[...] Por que tomou, de súbito, esse ar assustado?” “Tenho frio.” O rei teve um gesto de espanto. “Frio?” “O fogo apagou-se, sire. Estamos no meio do inverno e são duas horas da manhã.” No semblante de Luís XIV lia-se uma expressão de surpresa divertida. [...] Desacolchetou o gibão marrom de espesso veludo, retirou-o e colocou-o nos ombros da jovem. Ela sentiu-se envolver pelos eflúvios de seu calor masculino, junto com o perfume de íris, leve e penetrante, que era do agrado do soberano e evocava o prestígio e o temor de sua presença. Experimentou um prazer quase sensual em trazer para o peito as bandas agaloadas de ouro da vestimenta, muito grande para ela. A mão que o rei pousara em seu ombro ali deixara a, mesma sensação ardente que experimentara no sonho. Ela fechou os olhos, e depois abriu-os. O rei, de joelhos diante da lareira, ali dispunha com simplicidade achas de lenha e atiçava o fogo dos carvões.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Novembro 2019
Ele a ajudara a vestir e provar os vestidos. Eram todos magníficos. Vestira então o púrpura tle reflexos profundos. As pregas do veludo estofavam sua silhueta, e o que caracterizava esse vestido um pouco pesado mas suntuoso era seu ar majestoso. Joffrey passou por trás dela. Colocou um colar de diamantes em seu colo, sobre seus ombros. Cada diamante era encimado por um pequeno rubi. Era como um
plastron de valor inestimável. Muito ereto, muito escuro perto de sua brancura e de sua "lourice", examinava-a com olhar crítico no espelho, e ela reviu aquele dia remoto em que ele lhe colocara no pescoço frágil de dezesse-te anos seu primeiro presente. Estremecia sob a carícia de suas mãos dominadoras. Ele não mudara, o Trovador do Languedoc, a mesma chama ardente brilhava em seu olhar. “Depois de tantos anos, voltamos a nosso ponto de partida”, pensava. Viver com Joffrey de Peyrac era uma aventura que só se podia conhecer através dele.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o complô das sombras. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Outubro 2019
Todo ano, ao voltar a Wapassu nos inícios de outubro, Angélica prometia a si mesma que no ano seguinte se concederia uma temporada de verão em sua residência preferida. A obrigação de aproveitar os meses ensolarados para efetuar as longas viagens à costa, ou visitas à Nova França e à Inglaterra, privava-a de viver em Wapassu a época da floração, que era também a das colheitas de símplices para as reservas medicinais. Por sorte, granjeara entre seus amigos, os Jonas, e várias mulheres do povoado, preciosos adeptos da ciência; em sua ausência, e de acordo com suas instruções, eles se incumbiam de recolher as plantas, conforme as datas recomendadas. Ninguém descansava em Wapassu e em nenhum domínio. O fim de estação, que, em seu esplendor, podia ser breve, era particularmente ocupado. Enquanto se entregavam às últimas grandes caçadas, às amplas colheitas de frutos dos bosques e das charnecas, e de cogumelos, os que chegavam subindo do sul, em caravanas cada vez mais numerosas, deviam sem tardar lançar-se, após as primeiras efusões, a trabalhos supremos, arranjos supremos, supremas inspeções antes da estação fria. Todas as tarefas, que o desconforto do inverno tornaria mais difíceis, se não impossíveis, deviam ser executadas.
(Golon, Anne e Serge. A vitória de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Setembro 2019
De manhã tinham sido vistos na capela do eremita, um recoleto encanecido, de batina cinzenta, assistindo ao ofício religioso. Com má vontade, mas numa voz tonitruante, entoaram os cânticos. “Lamentável,” comentou Ville-d'Avray ao sair. “Eles me furaram os tímpanos. Ah, minha cara! Você ouvirá ofícios em Quebec! O coral da catedral e o da casa dos jesuítas...” “O senhor parece ter muita certeza de que nos verá em Quebec... De minha parte, esse projeto não parece em vias de realizar-se. Estamos em setembro agora, não sei onde anda o meu mari-do... E, de qualquer maneira, não posso passar o inverno tão longe da minha filhinha, que deixei num forte isolado, nas fronteiras do Maine...” “Leve-a com você!” disse Ville-d'Avray, como se fosse coisa simplíssima. “As ursulinas lhe ensinarão o alfabeto, e ela patinará no Saint-Laurent...” Apesar dos atrativos da festa que se preparava, para onde acorriam todos os acadianos dos arredores, inclusive alguns colonos ingleses ou escoceses, bem como os "principais" das tribos vizinhas, Angélica sentia que não poderia participar dela com p coração leve.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e a duquesa diabólica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Agosto 2019
Havia um grumete escolhido entre os mais raquíticos, um homem de cabelos cinza que, devido a um ferimento no pé, estava condenado a alguns dias de inaçào, o que não o impedia de andar, mancando, e um maltês de bela aparência, do qual Honorina era muito amiga e que já lhe havia descrito várias vezes, entre outras histórias, a casa de Ruth e Noémia, que ele tivera o prazer de conhecer quando fora para lá, escoltando o Conde de Peyrac. Ele girava os olhos plenos de promessas maravilhosas e descrevia a cabana com uma verve quase oriental. Dizia que essa cabana, aparecida no fundo de uma clareira, atrás de um círculo de pedras brancas, toda enfeitada de flores, que subiam até o telhado de colmo, e refulgente de cabochões de vidros coloridos incrustados nas madeiras das vigas, lembrara-lhe a maneira como, no fundo dos mares, o polvo, que é um animal eclético e fantasista, ornamenta a entrada de seu habitat, acumulando em volta dela pedaços de vidro, de bilhas, conchinhas, coral, e tudo o que consegue recolher de brilhante à sua volta. Honorina o teria escutado durante horas, mas seu coração terno não podia afastar o grumete, pois ela sabia que os grumetes têm uma vida dura nos navios, e não desejaria parecer desdenhar o homem de cabelos cinza porque ele estava ferido, tanto mais que ele sabia talhar muito bem com sua faca todo tipo de brinquedo e de figurinhas em madeira.
(Golon, Anne e Serge. Angélica no caminho da esperança. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Julho 2019
“[...] Então Cantor enfiou na cabeça de se fazer ao mar para procurá-lo.” “Por que no mar?” “Porque é muito longe”, disse ele, com um gesto vago. Adivinhava-se que para ele o mar era uma entidade da qual não tinha uma ideia muito precisa, mas que se abria sobre paraísos verdes onde todos os sonhos se realizavam, e Angélica o compreendia. “Cantor tinha composto uma canção”, continuou Florimond. “Já não me lembro bem da letra, mas era muito bonita. Era a história de nosso pai. Ele dizia: "Cantarei esta canção por toda parte, e haverá muita gente que o reconhecerá e que me dirá onde ele está"...” A garganta de Angélica contraiu-se e seus olhos umedeceram-se. Imaginava os dois a tramar a impossível odisseia do pequeno trovador em busca do homem da lenda. [...] “... Mamãe, a senhora acredita que ele encontrou meu pai?...” Angélica acariciou-lhe os cabelos sem responder. Não tinha coragem de lembrar-lhe uma vez mais que Cantor morrera, pagando com a vida, como os cavaleiros do Santo Graal, a busca de uma quimera. Pobre cavaleirozinho! Pobre trovadorzinho! Seu rosto fechado de lábios cerrados aparecia-lhe flutuando atrás das transparências de esmeralda do mar insondável. A água era tão profunda quanto seu olhar carregado de sonhos. “...à força de cantar”, murmurou Florimond, que continuava sua ideia. Ela havia ignorado o que aqueles olhos cândidos ocultavam. O mundo infantil, onde se misturam estranhamente a loucura e a sabedoria, já não lhe era acessível. "Todas as crianças têm loucuras na cabeça", pensou. "A infelicidade é que as minhas as fazem!"
(Golon, Anne e Serge. Angélica indomável. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Junho 2019
Ela riu novamente, inebriada pela noite de junho, enfeitiçada por sua longa estridência. Dominando as gaitas de fole, irrompia o canto dos pífaros e dos tambores. Angélica saltitou. “Miss Pidgeon, Mrs. McGregor, Mrs. Winslow e vocês, Dorothy, Janeton, venham, venham... vamos dançar a farândola com os bascos.” Tomou-as pela mão e conduziu-as correndo ao longo da encosta. Os bascos avançavam uns atrás dos outros nas pontas dos pés descalços com viravoltas e batendo os pés no ar, dançarinos prodigiosos cheios de graça e vivacidade. A luz das fogueiras fazia brilhar suas boinas vermelhas como papoulas. Um longo e flexível diabo girava à frente deles, com os braços erguidos, fazendo ressoar um tamboril guarnecido com peças de cobre, no qual batia com dedos ágeis. Quando Angélica e as companheiras surgiram no círculo de claridade, eles lançaram um brado cordial, e deram-lhes lugar entre eles. [...] A farândola prosseguia seu curso sinuoso e dançante entre as fogueiras, as casas, os rochedos, as árvores. Toda mulher, velha ou jovem, avó, mãe, menina ou garotinha, deve dançar na noite de São João.
(Golon, Anne e Serge. A tentação de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Abril - Maio 2019
Angélica, sentada entre o arcebispo e o homem de vermelho, incapaz de comer, viu desfilar um número incalculável de serviços e pratos: terrinas de perdiz, filés de pato, romãs sangüíneas, codornizes fritas, trutas, coelhinhos, saladas, tripas de cordeiro, foie gras. Eram incontáveis as sobremesas: creme frito ornado com filhós de pêssego, tortas de mel, doces de todas as espécies, pirâmides de frutas tão altas quanto os negrinhos que as levavam. Sucediam-se vinhos de todos os matizes, desde o mais escuro vermelho até o ouro mais pálido. Angélica notou junto a seu prato uma espécie de forquilha de ouro. Olhando em derredor, viu que a maioria dos comensais a utilizavam para espetar a carne e levá-la à boca. Procurou imitá-los, mas depois de alguns ensaios infrutíferos preferiu voltar à sua colher. Deixaram-na à vontade, ao verem que não sabia usar aquele pequeno e curioso instrumento, a que todo mundo chamava "garfo". Esse ridículo incidente aumentou seu desconcerto. Nada é mais difícil de suportar do que os regozijos alheios em que não toma parte o nosso coração.
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Fevereiro - Março 2019
“[...] Esta noite-, meditando nas Escrituras, repreendi-me por não ter sido justo para'com você, pois deveria adiantar uma parte de seu salário.” “Não é a isso obrigado, Mestre Gabriel, sei que uma criada deve trabalhar um mês para os novos patrões antes de receber o pagamento.” “Mas você veio para minha casa sem nada. E está escrito na Bíblia: "Não oprimirás o mercenário indigente, seja ele um de teus irmãos ou. um estrangeiro em tua terra, à tua porta. Dar-lhe-às o salário de SewáhAe trabalho antes do pôr-do-sol, pois ele é pobre e precisa recebê-lo". Aqui está, pois, q que havia decidido entregar-lhè.” Estendeu-lhe uma bolsa que tirou das abas do casaco. “Passa um pouco do pôr-do-sol”, disse, no entanto. Um leve humor desmentia por vezes o que ele tinha de solene. Angélica pensou que, nascido num outro credo, numa outra cidade, ele teria podido ser um epicurista espiritual como o Cavaleiro de Méré, por exemplo.
(Golon, Anne e Serge. A revolta de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Dezembro 2018 - Janeiro 2019
Pelo final do banquete, Florimond desapareceu. De passagem, deixou a coroa com um lacaio, e saiu para orientar os artilheiros que iam acender os fogos de artifício. Ele mesmo presidira a disposição dos fogos. Todos os convidados passaram para o terraço do Castelo Saint-Louis, que dava para o rio. A beleza iluminada da paisagem, o deleite dos espectadores, o desenho dos telhados e das chaminés em diferentes alturas, a suavidade da lua, o brilho da neve pousando seu escudo gelado sobre os montes longínquos e o vasto desenrolar da clara planície do Saint-Laurent compunham uma noite inesquecível.
(Golon, Anne e Serge. Angélica em Quebec I. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Outubro - Novembro 2018
Desnorteada, abalou pelos corredores do Louvre. Procurava Kuassi-Ba! Queria ver a Grande Mademoisellel... Seu coração, sufocado de angústia, pedia o socorro de um coração amigo, mas em vão. Os vultos que com ela se cruzavam eram surdos e cegos, inconsistentes marionetes vindas de outro mundo. Caía a noite, trazendo consigo uma tempestade de outubro que açoitava as vidraças, inclinava as chamas das velas, silvava sob as portas, balançava os tapetes. Colunatas, carrancas, sombras solenes das escadas gigantes, madeiras douradas, pontes e galerias, tremós, lajes, molduras... Angélica errava através do Louvre como através de uma selva tenebrosa, de um labirinto mortal.
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Agosto - Setembro 2018
“A vontade é uma arma mágica e perigosa,” observou ele. Angélica encarou-o, agitada por uma cólera brusca, como toda vez em que se sentia lida por ele. “Quer dizer que é preferível deixar-se levar pela vida e pelos acontecimentos, como um cão morto ao sabor das ondas?” “Nosso destino não está em nossas mãos, e o que está escrito está escrito.” “Quer dizer que nunca se pode alterar a sorte?” “Sim, pode-se,” disse ele, grave. “Todos os seres humanos possuem uma ínfima possibilidade de contrariar a sorte. Isso só se consegue com força de vontade. É por isso que digo que a vontade é uma forma de magia, já que força a natureza. E que é perigosa, gois o resultado custa muito caro e acarreta as provações da vida. É por isso que os cristãos que empregam a vontade pessoal a cada passo e para atingir objetivos mesquinhos estão sempre em desacordo com o próprio destino e cobertos de males, dos quais se queixam com tanta frequência.” Angélica meneou a cabeça. “Não posso compreendê-lo, Bei Osman. Pertencemos a dois mundos diferentes.”
(Golon, Anne e Serge. Angélica indomável. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Junho - Julho 2018
“Era no Plessis... Eu completara dezesseis anos e meu pai comprara-me um regimento. Estávamos na província para o recrutamento. Em uma festa apresentaram-me uma adolescente. Tinha a minha idade, mas a meus olhos experimentados não era senão uma criança. Envergava um vestidinho cinza corn laços azuis no corpete. Tive vergonha quando ma designaram como prima. Mas, quando lhe tomei a mão para conduzi-la à dança, senti que tremia, e aquilo causou-me uma sensação nova e maravilhosa. Até então fora eu quem sempre tremera diante do desejo imperioso das mulheres maduras ou das impertinências picantes dos jovens coquetes da corte. Aquela garota devolvia-me um poder que fora escarnecido. Seus olhos admirados foram um bálsamo, um licor inebriante; senti que me tornava um homem e não mais um brinquedo; um mestre e não mais um criado... [...]”
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Abril - Maio 2018
A Sra. du Plessis abriu caminho com dificuldade através da multidão heteróclita de cocheiros e lacaios, de baixa condição sem dúvida alguma, visto que a maior parte não trazia libré ou insígnias e nem mesmo conhecia a proprietária do local. Um deles, tipo grosseiro de nariz vermelho e fedendo a vinho, só lhe abriu passagem vociferando: “Não se apresse, minha bela, chegou muito cedo! Há muitas outras pessoas, mais importantes, que esperam desde a manha.” Flipot berrou ao insolente que era à patroa que ele se dirigia. O outro mal se alterou: “Não tente me enganar. A patroa deste lugar é uma grande senhora, dona de milhões, e que o rei não deixa um minuto, ao que parece. Ela não viria até cá numa velha carroça, e justo com um criadinho como você atrás dela. [...]”
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Março 2018
“Imagine que toda a tribo do Plessis, marquês, marquesa, filho, pajens, criados, cães, acaba de chegar a seus domínios. Têm um hóspede ilustre, o Príncipe de Conde, com todo o seu séquito. Caí no meio deles e me senti deslocado. Mas meu primo se mostrou amável. Fez-me perguntas, pediu-me notícias suas, e sabe o que me solicitou? Que levasse Angélica para substituir uma das donzelas de honor da marquesa. Esta teve de deixar em Paris quase todas as meninas que a penteiam, a divertem e tocam alaúde para distraí-la. A chegada do Príncipe de Conde a alvoroça. Necessita, assegura, de algumas camareiras graciosas para ajudá-la.” “E por que não eu?”, exclamou Hortênsia, escandalizada. “Porque ele disse "graciosas"”, respondeu seu pai sem rodeios.
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Fevereiro 2018
“As ternas são chorosas e tolas. As ambiciosas têm que sentir a férula para não devorar tudo. Mas você... Você nasceu para ser sultana
bakhi, como dizia aquele príncipe sombrio que queria raptá-la. Aquela que domina os reis. Aceito o título desde já. E me inclino. Amo-a de cem modos diferentes. Por sua fraqueza, sua tristeza que desejaria apagar, seu esplendor que desejaria possuir, sua inteligência que me revolta e confunde, mas que se me tornou necessária como os objetos preciosos de ouro e mármore, quase belos em demasia, em sua perfeição, e que é preciso ter junto de si como penhor de riqueza e força. Você me inspirou um sentimento desconhecido: a confiança.”
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Janeiro 2018
Em Quebec, podia-se brincar, namoricar, mas a sólida armadura das consciências, a dificuldade de subjugá-las, mantinham nos limites da prudência a aventura entrevista. Por outro lado, Ville-d'Avray dizia que Quebec era uma cidade para se cometerem adultérios deliciosos. Tanto mais deliciosos pelo fato de serem espionados pelos olhares mais severos. Cometiam-nos? Eis a questão. Uma questão que se entrelaçava como um véu vaporoso por entre aqueles casais que seguiam risonhos pelas aléias do jardim do governador. Com aqueles franceses, nunca se podia ter certeza se um sorriso, uma pressão de mão, uma ternura no olhar eram mera cortesia ou se não valeriam por um sinal discreto e promissor para um encontro ardente.
(Golon, Anne e Serge. Angélica em Quebec II. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Dezembro 2017
Alguns dias antes do Natal, a neve começou a cair. A cidade vestiu suas roupas de festa. Nas igrejas personagens da Natividade reencontravam seus lugares, o Menino Jesus entre o boi e o jumento. Os estandartes das confrarias continuavam puxando pelas ruas cobertas de neve e lama suas grandes procissões cantantes. Segundo a tradição, os agostinianos do Hôtel-Dieu puseram-se a fabricar milhares de filhoses, temperados com suco de limão, que uma multidão de garotos saía vendendo por toda Paris. Só com tais filhoses se podia quebrar o jejum, e o dinheiro proveniente, de sua venda ajudava a celebrar o Natal dos pobres enfermos. Simultaneamente, os acontecimentos se precipitaram para Angélica. Arrastada nos lúgubres meandros do espantoso processo, a custo percebeu que se estavam vivendo as horas benditas do Natal e os primeiros dias do Ano-Novo.
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987)
Novembro 2017
Ali, o outono estava mais adiantado. Os cisnes, patos, gansos brancos, gansos bernachos, passaram, constelando o céu com cruzes de pontas pretas. As abelhas tinham feito suas casas no alto dos ramos, sinal de que o inverno seria rigoroso. A Sra. Jonas tinha pressa de mostrar a Angélica em que ponto estavam os trabalhos referentes às provisões de inverno reunidas durante o verão, fruto de colheitas ativas e de cuidados dispensados às primeiras culturas. Bagas dos bosques, cerejas-silvestres, pequenas peras, nozes, frutos de faias, avelãs, foram juntados, colocados para secar, assim como os diversos cogumelos, enfiados em cordões finos e resistentes e estendidos em enfiada de uma viga a outra dos forros. Em caso de penúria, raízes de bardana eram cozidas em água salgada e as bolotas podiam ser consumidas depois de se jogar fora a primeira água.
(Golon, Anne e Serge. Angélica no caminho da esperança. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Outubro 2017
Ele entrou. Adivinhou que ela dormia. A penumbra conservava os vestígios de um perfume de mulher que se lhe tornar; familiar. A visão das roupas femininas jogadas aqui e ali o fez sorrir. Onde estava a austera e esquiva huguenotezinha de La Rochelle, em trajes de criada, que um dia, quando se vogava para a América, o Rescator mandara chamar à sua cabina luxuosa para tentar domesticá-la? Onde estava mesmo a pioneira que, durante todo aquele terrível inverno do Alto Kennebec, ficara ao seu lado, a assisti-lo com uma coragem sem limites? Apanhou uma ponta de renda, um espartilho cuja seda mantinha a forma das curvas plenas. Depois de ter sido uma criada anónima, e em seguida a companheira de um explorador do Novo Mundo, eis que finalmente sua Angélica voltava a ser a Sra. de Peyrac, Condessa de Toulouse. “Deus queira!”, murmurou, lançando um olhar fervoroso para a alcova onde se adivinhava a cintilação de uma cabeleira.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o complô das sombras. São Paulo: Círculo do Livro, 1989)
Setembro 2017
Veio o mês de setembro, frio e chuvoso. “Eis o Homicida, o inverno, que chega”, queixou-se Pão Negro, aproximando-se do fogo, com seus andrajos molhados. A madeira úmida rechinava na lareira. Excepcionalmente, os burgueses e os ricos comerciantes de Paris não esperaram o Dia de Todos os Santos para envergar seus trajes de inverno e fazer-se sangrar, segundo as tradições de higiene que recomendavam entregar-se à lanceta do cirurgião quatro vezes por ano, quando da mudança das estações. Mas os nobres e os mendigos tinham outro motivo de preocupação além de falar da chuva ou do frio. Todas as altas personagens da corte e das finanças estavam aturdidas pela prisão do riquíssimo superintendente das Finanças, Sr. Fouquet.
(Golon, Anne e Serge. Angélica a caminho de Versalhes. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 133)
Agosto 2017
Desta vez foi com um sorrio que ele a deteve. O sorriso descobriu o brilho dos dentes que continuavam esplêndidos. Era bem o sorriso do último dos trovadores, mas velado de um sentimento de melancolia ou desencanto. “Quinze anos, senhora! Pensai nisso, antes. Tentarmos nos enganar seria uma comédia indigna e estúpida. Um e outro temos outras recordações... conhecemos outros amores...” Foi então que a verdade que ela se recusava a encarar trespassou-a como a ponta afiada e gelada de um punhal. Ela o encontrara, mas ele não a amava mais. Em todos os seus sonhos sempre o imaginara a estender-lhe os braços. Esses sonhos - ela percebia agora - eram pueris como a maioria das imaginações femininas. A vida se inscreve numa pedra mais dura do que a cera simples e mole dos sonhos. Sua forma se molda em relâmpagos cortantes, que ferem, que machucam.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e seu amor. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, p. 77)
Julho 2017
Angélica encontrou o Sr. de Ville-d’Avray empoleirado numa grande rede de algodão, pendurada em duas vigas. O filhinho brincava aos pés dele com pedaços de madeira. “É uma autêntica rede do Caribe!”, explicou o governador. “Que conforto! É preciso saber estender-se bem atravessado, de uma ponta a outra, e então se descansa admiravelmente. Consegui-a por algumas tranças de fumo de um escravo caraíba que passava por aqui com o amo, um desertor de navio pirata.”
(Golon, Anne e Serge. Angélica e a duquesa diabólica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, p. 384)
Junho 2017
O pastor agradeceu e pediu permissão para retirar-se a fim de “lavar-se um pouco”. “Não lhe bastou o aguaceiro?”, pensou Angélica. “Que pessoas originais esses huguenotes! Dizem com razão que não são como as outras criaturas. Amanhã perguntarei a Guilherme se ele também se lava a cada instante. Deve ser algum de seus ritos. Por isso mostram, amiúde, esse ar triste e às vezes são tão irritáveis como Lützen. Têm a pele muito áspera e em carne viva e deve doer-lhes... É como o jovem Filipe, que também sente necessidade de passar a vida a banhar-se. Não há dúvida de que essa preocupação acabará por arrastá-lo à heresia. Pode ser que o queimem, e será muito bem-feito!”
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 87)
Maio 2017
Uma mulher jamais é tão vulnerável como quando precisa ser consolada de uma ausência de sua amada. Os homens, os maridos, deveriam sabê-lo. [...] Sonhadora, em meio ao balanço acalentador do navio, ela deixou o pensamento perder-se no luar, vende nele desfilar, numa seleção bastante particular, as antigas silhuetas dos homens que conhecera, todos tão diversos, e em meio aos quais passaram de repente, sem que ela soubesse por que, o rosto franco do conde de Loménie-Chambord e mesmo distante, hierática mas tão clemente, a nobre figura do abade de Nieul.
(Golon, Anne e Serge. A tentação de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 191-192)
Abril 2017
Angélica e Abigail estavam ambas no centro do jardinzinho, por entre os altos tufos de flores e folhagens. Era um jardinzinho que rodeava a casa dos Berne e fechado com uma cerca, à maneira da Nova Inglaterra, o tipo de toda mulher de colono precisava ter, a fim de preservar a saúde da família com remédios, naquele lugar onde, com frequência, o boticário se encontrava muito distante - e também para realçar e apurar os pratos sem graça, os peixes e a caça. Misturavam-se alguns legumes, verduras, peras, rabanetes, cenouras, e muitas flores para alegrar o coração. [...] Abigail afastou uma folha redonda e aveludada de um pé que avançava para fora da platibanda.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e a duquesa diabólica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, p. 86)
Março 2017
No exército francês, o rei recebia as damas à sua mesa. Numa noite, ao jantar, seu olhar caiu sobre Angélica, sentada não muito longe dele. Suas vitórias recentes e aquela mais íntima sobre a Sra. de Montespan haviam, na alegria do triunfo, embotado um pouco as habituais faculdades de observação do soberano. Acreditou ver a jovem pela primeira vez, desde o início da campanha, e perguntou-lhe amavelmente: “Com que então, deixastes a capital? Que diziam em Paris quando partistes?” Angélica dirigiu-lhe um olhar frio. “Diziam as vésperas, Sire.” “Pergunto quais eram as novidades.” “As ervilhas frescas, Sire.”
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 224)
Fevereiro 2017
Ela conduziu-o ao salão vizinho, onde fizera pôr a mesa para ele. Os castiçais de ouro, nas extremidades da mesa, iluminavam numa bandeja de ouro uma imensa perua recheada de castanhas, guarnecida com pastéis de maçã. Rodeavam-na terrinas de legumes quentes e frios, uma caldeirada de enguia, saladas e uma profusão de frutas numa travessa de prata. Para fazer as honras ao pobre homem da floresta, ela usara a baixela de que tanto se orgulhava. Além da bandeja, dos castiçais e da travessa, havia duas taças cinzeladas e dois gomis antigos trabalhados, de valor inestimável.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 426)
Janeiro 2017
Entre os regimentos que o rei enviou a Poitou em 1673 estava o 1º regimento de Auvergne comandado pelo Sr. de Riom, e cinco das mais gloriosas companhias das Ardennes. O rei ouvira muitos comentários sobre o terror supersticioso dos soldados diante das ciladas da floresta do Poitou. Os que hoje enviava, naturais de Auvergne e das Ardennes, ele os escolhera entre homens dos bosques, habituados desde a infância à sombra e à maldição das árvores, aos javalis, aos lobos, aos rochedos, acostumados a ler pistas invisíveis, todos filhos de tamanqueiros, de lenhadores ou de carvoeiros. [...] O rei dissera: “Antes da primavera.” O inverno não deteria a guerra.
(Golon, Anne e Serge. A revolta de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, p. 196)
Dezembro 2016
Nessa vestimenta de sonho, Angélica tinha um ar irreal. Sua pele ambarina, que ela empoara, captava a luz. [...] Delfina, a jovem camareira, chamou Henriqueta e Iolanda e também requisitou o auxílio do costureiro e de Kuassi-Ba, pois o manto não era fácil de carregar. Era feito de pele branca, forrado de lã fina e cetim branco, com um amplo capuz bordado de ouro e prata por dentro. Tinha-se que prestar atenção para que não arrastasse no chão, já que o soalho de um navio nem sempre era o que se podia encontrar de mais limpo.
(Golon, Anne e Serge. Angélica em Quebec I. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, p. 11-13)
Novembro 2016
Florimond se atirou à cama com os olhos brilhando. “Ah, a espada! Essa é a arma de um gentil-homem. Aqui, neste país de joões-ninguém, já não se sabe o que é a espada. Batem-se com cassetetes, com machados, como os índios, ou o mosquete, como os mercenários. Há que lembrar da espada. É o dardo das almas nobres!... Ah, ser corneado um dia e poder oferecer-me um belo duelo!...”
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o Novo Mundo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 400)
Outubro 2016
O latido compacto da matilha explodiu subitamente. Uma forma castanha irrompeu na orla do bosque. Era o cervo, um animal muito novo, cujos chifres mal despontavam. Seu galope fez com que a água brotasse em jorros através do pântano. Atrás dele a massa de cães desceu como um rio branco e avermelhado. Em seguida um cavalo emergiu da mata, montado por uma amazona de gibão vermelho. Quase ao mesmo tempo, e de todos os lados, cavaleiros desembocaram e desceram ao longo da inclinação relvada. Em um instante o terno e bucólico vale foi invadido por um tumulto bárbaro onde se misturavam os latidos persistentes dos cães, os relinchos dos cavalos, as interpelações dos caçadores e a fanfarra estrondeante das trompas que acabavam de entoar o halali.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 34-35)
Setembro 2016
Angélica ainda se perguntava se ele sabia de fato para onde ia ou se era o acaso que os conduzia a bom porto. Por cem vezes deveriam ter-se perdido, perecido. Mas era um fato: ninguém morrera. E há três semanas, os que compunham a pequena caravana partida de Gouldsboro nos últimos dias de setembro haviam-se submetido ao próprio destino, rolados, inebriados pela floresta e seus caminhos, como seixos no fluxo da torrente, a pele amorenada nos ângulos do rosto, os olhos lavados de luz viva, de azuis resplandecentes, do azul do céu entrevisto através de um caleidoscópio colorido de folhagens e, nas dobras de suas roupas, os odores de madeira queimada, de outono, de resina e framboesa. No calor daquele final de estação, o hálito dos lagos evaporava-se às primeiras horas da manhã, deixando a superfície da água brilhante e límpida e, sob as árvores, uma secura estalejante que ressoava longe.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o Novo Mundo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 9)
Julho - Agosto 2016
Ao chegar ao Quai de la Tournelle, sentiu o cheiro de feno fresco. O primeiro feno da primavera. As chalanas ali estavam atracadas em fila, com seu carregamento leve e odorífero. Na aurora parisiense, elas espiravam um anélito de incenso morno, o aroma de mil flores secas, a promessa dos belos dias que viriam. [...]
Ela entrou na água e subiu para a proa de uma chalana. Depois, penetrou no feno com voluptuosidade. Sob o toldo, o aroma era inda mais embriagante: úmido, quente e carregado de tormenta, como um dia estival. De onde poderia vir aquele feno temporão? De uma campina silenciosa e rica, fecunda, batida pelo sol. Aquele feno fazia pensar em paisagens arejadas, secas pelo vento, de céus cheios de luz.
(Golon, Anne e Serge. Angélica a caminho de Versalhes. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 87)
Maio - Junho 2016
Quando saía à procura de plantas e não à coleta, Angélica levava somente Honorina. Terminado o inverno, Honorina deixava de ser uma criança como as outras, preocupada com fogueiras e comidas e brincadeiras, e voltava a ser a companheira da mãe. Para armas e flores, havia um entendimento entre as duas. Honorina era resistente, caminhava resolutamente sobre os passos de Angélica e até chegava a fazer o dobro do trajeto, à força de correr e bisbilhotar por todo lado. Para ter certeza de não perdê-la naquelas matas imensas, Angélica pendurava-lhe um sininho no pulso. Assim, em toda parte o alegre ruído revelava-lhe a presença.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o Novo Mundo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 530)
Abril 2016
Versalhes estava inundada de luz. Um dia de abril, inesperadamente quente e primaveril, envolvia o palácio com o vapor rosa e dourado, que parece característico das regiões com água estagnada. “Como Versalhes é bela” disse Angélica consigo. Voltara-lhe a coragem e as inquietações místicas se haviam dissipado. Diante de Versalhes podia-se crer na clemência de Deus e do rei, que edificara tais maravilhas. [...] Angélica sentou-se na borda de uma concha de mármore jaspeado. Ao seu redor, amáveis nereidas brandiam castiçais aquáticos com seis braços dourados sob a forma de algas marinhas lançando jatos de água perolados. Um farfalhar de arvoredo, provocado pelos chilreios de milhares de pássaros, animava as abóbadas embaçadas de orvalho.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 442)
Março 2016
Um suor frio inundou Angélica. A tarde caía. Por trás da grade do respiradouro, uma luminosidade avermelhada denunciava o crepúsculo. Angélica bateu na porta do compartimento, mas ninguém apareceu ou respondeu ao seu chamado. Ela voltou à seteira e agarrou-se às barras. A abertura ficava ao nível do chão. Um vago rumor indicava que o mar não devia estar longe. Tornou a chamar: em vão. A noite avançava, indiferente aos prisioneiros emparedados vivos, que, até a manhã, nada mais deviam esperar de seus semelhantes. Ela teve um movimento de vazio, de ausência, no qual girou em círculos, gritando como uma condenada. Um ligeiro ruído fê-la recobrar a razão. Era um barulho de passos no exterior. Angélica voltou a colar-se ao frio metal enferrujado das barras da janela. Os passos aproximavam-se. Dois sapatos surgiram na outra extremidade da abertura. “Por amor dos céus, vós que passais... detei-vos! Escutai-me!” gritou Angélica. Os sapatos imobilizaram-se. “Pelo amor de Deus, compadecei-vos de minha súplica.” Ninguém respondia, mas os sapatos não se moviam.
(Golon, Anne e Serge. A revolta de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, p. 229)
Fevereiro 2016
Após um breve repouso, reencetaram a marcha. Falavam pouco, conservando as forças para o esforço intenso que a longa caminhada representava, com as raquetes de corda aos pés, bastante incômodas e que faziam cada passo uma dificuldade; insuficientes, porém, para mantê-los sempre à superfície da neve mole ou poeirenta. Tinham que safar-se, então, levantando bem alto o joelho, para sentir, no passo seguinte, a neve ceder outra vez sob o peso deles. Florimond resmungava, dizia que era preciso encontrar outro jeito de caminhar na neve. [...] Os músculos de Florimond doíam. Ele, que se acreditava jovem e forte, dava-se conta de que tinha braços de alfenim quando tinha que repetir dez vezes seguidas em vinte minutos o esforço necessário para se içar de uma vala, agarrando-se aos galhos de um abeto.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o Novo Mundo, São Paulo: Círculo de Livro, 1988, p. 370)
Janeiro 2016
Kuassi-Ba passou perto de cada um, depositando com sua mão negra, sua mão de rei mago, um lingote de ouro. [...] O velho Elói brandiu o seu no ar. “Cometeis um erro, senhor conde. Não sou dos vossos. Vim assim por nada, e fiquei. Não me deveis nada.” “És o trabalhador da undécima hora, velho pirata” respondeu Joffrey de Peyrac. “Conheces o teu Evangelho? Sim, pois bem, medita nele e fica com o que te dão. Comprarás uma canoa nova e dois anos de mercadorias de troca, para recolher as peles do oeste. Todos os teus concorrentes sufocarão de inveja...”
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o Novo Mundo. São Paulo: Círculo de Livro, 1988, p. 415-416)
Dezembro 2015
A Sra. De La Vaudière exultou. “Bem como pensei! O Sr. de Peyrac está com os jesuítas.” [...] A Sra. de La Vaudière parecia familiarizada com o local, que não lhe inspirava receio algum. Não se deixou impressionar, como Angélica, pelo vestíbulo lajeado, guarnecido de algumas de algumas cadeiras, um único crucifixo grande à parede e uma pia de água benta à direita da porta. Berengária molhou as pontas dos dedos com um misto de desenvoltura e compunção que foi uma obra-prima de graça e hipocrisia femininas. Ao fazer isso possuía um encanto inegável, a petulância ao mesmo tempo alegre e devota que se atribui a certa categoria de anjos que rodeiam o trono do Altíssimo.
(Golon, Anne e Serge. Angélica em Quebec I. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, p. 223-224)
Novembro 2015
Todos sentiram-se igualmente tranquilizados e excitados por aquelas histórias de conto de fadas, da mesma forma como floresceram nelas a alma cristalina e diamantina das províncias. Em silêncio, eles estavam conscientes da felicidade daquela grossa parede protetora ao seu redor, o verdadeiro valor do antigo edifício, que se alisava como uma ilha rochosa negra na escuridão, entre os dois elementos originais da criação, a água dos pântanos na antiga baía do mar, de onde as profundezas salobras do oceano se retiraram e o gentil brilho da enorme floresta celta, que cobriu os promontórios no fim do mundo.
(Golon, Anne. Angélique l’Intégrale: Die junge Marquise. Tradução do alemão)
Outubro 2015
Seu entusiasmo continuava intacto. Ela se maravilhava às vezes, e agradecia aos céus em segredo por jamais ter saído amargurada de suas provações. Ao contrário, seu espírito permanecia juvenil. Possuía mais experiência que a maior parte das mulheres de sua idade, e menos desilusões. Sua vida estava semeada de prazeres cultivados e maravilhosos, como os conhecem as crianças. Quem jamais conheceu a fome pode regozijar-se em morder um pedaço de pão quente? E quem caminhou de pés nus pelas ruas de Paris, e chegou um dia a possuir semelhantes pérolas, não se deve acreditar a mulher mais feliz do mundo?
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 12-13)
Setembro 2015
A tarde ia avançada quando ele lhe revelou uma nascente quase invisível numa pequena clareira, uma água que jorrava e desaparecia simultaneamente, sem um ruído, logo tragada pelo terreno esponjoso, uma oferenda silenciosa e ininterrupta da terra, uma água de gosto acre. Com ela sentia-se na língua o gosto de folha. A primavera ressuscitava ali: agrião, sálvia e hortelã misturados. O encanto daquela nascente agiu sobre Angélica a ponto de fazê-la perder a noção do tempo. [...] A mulher branca, explicou ele (Mopuntuk), era naturalmente, como todas as mulheres, bastante rebelde e inclinada um pouco demais a convencer um homem de que ele não sabia o que fazia, mas reconhecia a água das nascentes e sabia distinguir-lhes o paladar. Era um grande dom. Um dom benéfico.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o Novo Mundo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 270)
Julho - Agosto 2015
Ela voltou para a escadaria estreita, depois outra, e outra, até que finalmente se encontrou em um terraço com toda a abóbada estrelada do céu espalhada acima dela. Uma luz prateada manchou a névoa fresca que se elevava do mar em um vapor azulado que envolvia tudo, até a cúpula da mesquita próxima. O minarete pareceu quase transparente sob os raios da lua, e a deixou ligeiramente tonta, já que parecia deslizar sob a luz.
(Golon, Anne e Serge. Angélica indomável. São Paulo: Círculo do Livro, 1988)
Junho 2015
“E a mim me parece que em vossa família sois muito suscetíveis!”, replicou Angélica, cuja cólera se sobrepunha ao terror. “Se vos festejam ou vos adulam, ofendei-vos porque aquele que vos recebe parece mais rico que vós. Se vos oferecem presentes, é uma insolência! Quando não vos saúdam bastante profundamente, é outra insolência! Quando não se vive como mendigo, estendendo a mão até arruinar o Estado, como todo o vosso galinheiro de gentis-homens, é uma arrogância contundente! Quando não se pagam os impostos com pontualidade, é uma provocação!... Um bando de gente mesquinha, eis o que sois, vós, vosso irmão o rei, vossa mãe e todos os traidores vossos primos: Condé, Montpensier, Soissons, Guise, Lorena, Vendôme...”
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 469-470)
Abril - Maio 2015
O porteiro balançou a cabeça. A Semana Santa estava prestes a começar, e o mosteiro já estava em retiro. Era verdade que um silêncio mais profundo que o habitual pesava sobre a abadia. Os homens consagrados reuniam-se para a terrível peregrinação dos dias que antecediam a Páscoa. A mulher devia afastar-se. [...]
Duas semanas antes, nesse mesmo local, ela escorregara na neve, sufocada pelo frio cortante, sentindo na carne toda a crueldade do árido inverno. Hoje, o valezinho estava aveludado de verde, o riacho que transpusera adormecido sob o gelo, saltava com a graça de um cabrito novo, as violetas adornavam a orla das árvores. O cuco cantava anunciando o calor, o desabrochar da primavera.
Angélica ficou com os olhos embaçados diante de tais maravilhas. Com que então a natureza e a vida podem ter dessas surpresas clementes. De um inverno longo e rigoroso, jorrava com força decuplicada a riqueza das folhagens e das flores [...].
(Golon, Anne e Serge. A revolta de Angélica. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, p. 224)
Março 2015
A última porta a franquear para enfim aquecer-se à luz do Rei-sol - o casamento com Filipe - desmoronava. Ela sempre soubera, aliás, que isso seria muito difícil e que não teria forças suficientes. Não passava de uma chocolateira, e não poderia manter-se por muito tempo mais ao nível da nobreza, que jamais a acolheria.
Recebia-a, mas não a acolhia... Versalhes!... O brilho da corte, o esplendor do Rei-Sol! Filipe! Belo deus Marte inacessível! Ela recairia ao nível de um Audiger. E seus filhos nunca seriam gentis-homens... Absorvida em seus pensamentos, ela não sentia o tempo passar. O fogo se extinguia na chaminé, a vela fumegava.
(Golon, Anne e Serge. Angélica a caminho de Versalhes. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 418)
Fevereiro 2015
“Meus cordeiros”, disse o senhor Vicente, “filhinhos de Deus, intentastes provar o fruto verde do amor. Eis por que vossos dentes se embotaram e tendes os corações cheios de tristeza. Deixai, pois, amadurecer ao sol da vida aquilo que sempre esteve destinado a sazonar.
Quando se procura o amor, é preciso não se transviar, porque, do contrário, talvez ele nunca seja encontrado. Que castigo mais cruel para a impaciência e a fraqueza do que estar condenado s vida inteira a não morder senão frutos amargos e sem aroma!” [...] Angélica não virou a cabeça até chegar à porta do convento. Sentia uma grande paz e guardava a lembrança de uma velha e cálida mão pousada em seu ombro.
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 151)
Janeiro 2015
“O que pensais de uma tempestade nos arredores da Nova Escócia? Magnífica, não é? Não tem nada a ver com aquelas tempestades engarrafadas do pequeno Mediterrâneo. Felizmente, o mundo é mais vasto e não mostra apenas mesquinharia...” Ele ria.
Isso indignou tanto Angélica, que ela conseguiu se pôr de pé apesar do peso de chumbo que parecia ter sua saia encharcada. “Vós rides” exclamou, encolerizada. “Todas as tempestades voz fazem rir, Joffrey de Peyrac... As torturas voz fazem rir. Cantais no átrio de Notre-Dame... O que importa que eu chore? O que importa que eu tenha medo de tempestades? Até no Mediterrâneo... sem vós...”
(Golon, Anne e Serge. Angélica e seu amor. São Paulo, Círculo do Livro, 1989, p. 238-239)
Dezembro 2014
Um homem se distancia pelo deserto gelado. Iniciam-se as quatro semanas do Advento. O Natal aproxima-se. Natal! Natal! E enquanto repicam os sinos e o sopro da vida escapa de todas as chaminés, como de um incensório e dos círios acesos, subindo ao céu gelado para lembrar ao Criador que os homens estão ali, naquele deserto desumano, um homem, atado pelo voto da obediência, afasta-se de todo recurso, um Toga Negra se separa, a pesadas passadas de raquetes, do seio dos amigos, da estima dos seus e do santuário de suas obras e trabalhos. E nele mesmo o deserto gelado substituiu todas as chamas de vida.
(Golon, Anne e Serge. Angélica em Quebec I. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, p. 329)
Novembro 2014
Ancorada no canal, em meio à agitação de chalupas, ao lado de dois pequenos navios ingleses, de um falucho napolitano e de uma galera biscainha, a grande nau balançava-se como uma borboleta pousada junto ao tapete verde. Era uma fragata em miniatura, guarnecida de pequenos canhões de bronze, cujo casco, adornado de flores-de-lis, buquês, conchas e divindades marinhas, cintilava em ouro. O cordame era em seda autora ou carmesim, as bandeiras e tapeçarias, de damasco e brocado, guarnecidas de franjas de ouro e prata.
No equipamento e nos mastros, pintados de azul e ouro, flutuavam pavilhões, flâmulas, estandartes, bandeirolas, numa alegre sinfonia colorida onde luziam por todo lado, em ouro e prata, as armas e as iniciais do rei. Daquela joia, daquele brinquedo cintilante, Luís XIV fazia, naquele dia, as honras à corte. Um pé sobre a escada de madeira dourada, ele voltou-se para as damas. Quem seria escolhida para inaugurar o passeio aos campos do Trianon?... Vestido de cetim azul-real, o rei se harmonizava com o belo dia de verão. Ele sorriu e estendeu a mão a Angélica. Diante dos olhos de toda a corte ela subiu os degraus e instalou-se sob o dossel de brocado. O rei sentou-se ao seu lado.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 550)
Outubro 2014
Senhor, não se poderia criar nesta terra um mundo onde um Breteuil não tivesse o direito de desprezar um Colin Paturel, onde um Colin Paturel não tivesse que se sentir humilhado por seu amor inacessível por uma grande dama da corte?...
Um novo mundo, onde aqueles que tivessem bondade, coragem, inteligência seriam colocados no alto, onde ficariam embaixo aqueles que fossem desprovidos dessas qualidades? Não haveria uma terra virgem para receber os homens de boa vontade? Onde, Senhor?... Em que terra?...
(Golon, Anne e Serge. Angélica indomável. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 567)
Setembro 2014
“Parece que a Infanta ainda usa anquinhas com aros de ferro tão grandes que tem de pôr-se de lado para passar pelas portas. E o justilho apertado a tal ponto que parece não ter seios, ela que dizem tê-los formosíssimos”, exagerou a Sra. De Motteville ajeitando algumas rendas sobre seu magro torso. Joffrey de Peyrac deixou cair sobre ela seu olhar mais cáustico.
“Realmente, é preciso que os costureiros de Madri seja muito pouco experientes para estragar de tal maneira o que é belo, enquanto os de Paris são tão hábeis que realçam o que quase não existe.”
(Golon, Anne e Serge. Angélica, Marquesa dos Anjos. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 346)
Julho - Agosto 2014
Ela estava no sétimo mês de gravidez, a quinta em seis anos. Não tinha senão vinte e três anos; e já, atrás de si um deslumbrante romance de amor e, pela frente, uma longa vida de lágrimas ardentes a derramar. No outono, a Srta. de La Vallière, de amazona, vivera o seu esplendor final. Não era possível reconhecê-la agora, tão profunda fora a mudança. “Eis a que o amor por um homem pode reduzir uma mulher” pensou Angélica, num assomo de cólera.
(Golon, Anne e Serge. Angélica e o rei. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 221)